A personagem Artista
Como estudante de Arte e praticante de uma arte milenar – a cerâmica-, que me trouxe de volta à Escola Guignard, em 2013, me coloco neste lugar hoje, como personagem, com um novo olhar para o meu trabalho, adquirido principalmente com os estudos de história da arte, antropologia, filosofia, cultura afro-brasileira e arte contemporânea.
A cerâmica é tão antiga quanto a existência humana e apesar da sua crescente evolução cientifica, a transmissão desse conhecimento ainda é basicamente feita através da oralidade e de forma empírica, transmitida de geração a geração. Na China, por exemplo, a formulação dos vidrados cerâmicos é guardada a sete chaves e só é transmitida para um descendente mais próximo do ceramista que criou as fórmulas. Nesses países ela é tão valorizada quanto a pintura e talvez até mais, por eles saberem que cerâmica não é só arte, mas também, ciência, tecnologia e tradição.
A cerâmica também agrega aspectos antropológicos e sociais.
Seu caráter utilitário é um apelo primordial desde que o homem descobriu um tipo de terra que cozida poderia ser resistente para cozinhar, servir alimentos, fazer potes para guardar comida, potes para armazenar água e deixá-la fresca, potes maiores para enterrar seus mortos e para construir instrumentos sonoros de ordem ritualística.
Sendo essa arte tão antiga, uma questão me chama atenção como “personagem artista” que gostaria de pensar a respeito . Na medida em que a cerâmica implica um fazer de índole artesanal, o artista que a ela se dedica está comprometido com tal fazer. Como poderíamos pensar esse comprometimento no contexto da arte contemporânea que tantas vezes tende a negligenciar a artesania?
A terra é a morada do ser humano neste planeta, ao mesmo tempo fonte de vida, de alimento para sua existência aqui e agora. Perdemos a conexão mítica que nos ligava a ela através de nossos ancestrais indígenas e nos desconectamos dos elementos básicos que transformam a matéria.
O primeiro resgate contemporâneo que faço é o da origem primordial que se desconectou no tempo e no espaço através da história e transformou o ser humano num destruidor da natureza, centrado em si e absolutamente consumista. No livro Memória d’africa de Carlos Serrano ele fala da África tradicional antes da colonização.
“O sistema de pensamento tradicional africano entende que tudo no universo se interliga. Nessa ótica, é impensável qualquer dissociação entre a pessoa humana e o mundo natural, uma noção abrangente que inclui a totalidade da criação: animais, vegetais e minerais. Coerentemente mantinha-se com o espaço habitado relações de reciprocidade e de harmonia. Nessa cosmovisão, o equilíbrio com o meio ambiente não podia ser violado sob pena de provocar, no seio das forças que sustentam a natureza, uma perturbação que se voltaria, no final das contas, contra os próprios humanos.”
O continente africano é o mais antigo da terra, o berço do surgimento da raça humana, observando sua forma de viver e compreender a vida, percebo como os humanos se afastaram de sua origem que prima pelo equilíbrio, harmonia e respeito em relação a natureza. Com a ganância de explorar desenfreadamente minerais nobres, que hoje, são imprescindíveis na indústria, a humanidade quebra qualquer pacto de preservação da ecologia.
Serrano Carlos, Waldman Maurício. Memória D’África: a temática africana em sala de aula,2010, p-
Na concepção ocidental da Arte, a “Arte Primitiva” se tem a ideia de que esta é produzida de modo mais espontâneo e menos reflexivo, com menos intencionalidade artística do que as obras de autoria ocidentais. Esse pensamento preconceituoso libera os ocidentais da tarefa de reconhecer, pesquisar e levar a sério a estética indígena, em busca de sua poética seu significado místico e religioso.
Estudando a cerâmica de antigas civilizações peruanas percebi a incrível conexão desses povos com a natureza. Os antigos peruanos honravam seus deuses com oferendas, cerimônias religiosas e culto aos mortos.
Por meio de uma longa pesquisa arqueológica realizada através de objetos cerâmicos encontrados em tumbas pré-colombianas pode-se compreender que essas sociedades possuíam uma elite que governava e era formada por grandes senhores e senhoras que concentravam o poder político, social e religioso. Eles possuíam uma religião oficial e uma classe sacerdotal encarregada das cerimônias e da supervisão e produção de objetos ritualísticos. Diferente da religião cristã, as religiões antigas como a egípcia, grega, romana, viking e as do antigo Peru, contavam com vários deuses e deusas. As principais divindades eram representadas de maneira antropomorfa. A cerâmica é uma valiosa fonte de documentação do passado da humanidade. Esses artistas produziram esculturas naturalistas, animais considerados deuses, eram representados de forma finamente elaborada. As aves representavam o poder do céu, o felino o poder da terra e as serpentes as do mundo subterrâneo. A produção artística desse povo é considerada de grande nível, e era desenvolvida em geral por especialistas. Os pré-colombianos, especificamente os peruanos, possuíam grande tecnologia cerâmica do preparo da argila.
O trabalho artesanal com a argila necessita de controle de cada etapa da sua produção: a escolha da matéria prima, a preparação da massa, a confecção da peça, a decoração, a secagem, os acabamentos da superfície e as queimas.
Percebo agora como tem sido importante estudar arte contemporânea com um olhar mais maduro em relação a cerâmica, pois esta é uma arte à parte, que está intrinsecamente ligada ao artesanato, e ao conhecimento desse procedimento científico e tecnológico que envolvem seu processo.
A construção da figura do artista se faz a partir deste percurso de pesquisa e investigação dos materiais cerâmicos, da transmissão de um saber, da troca de experiências com os alunos, socializando e ampliando as redes de relações.